Introdução
Os discursos desempenham um papel fundamental na teoria psicanalítica desenvolvida por Jacques Lacan. Entre os quatro discursos que Lacan propõe – o Discurso do Mestre, o Discurso Universitário, o Discurso Histérico e o Discurso do Analista – o Discurso Universitário se destaca como uma ferramenta essencial para a análise das relações de poder e saber, particularmente no âmbito acadêmico e institucional. Esse texto tem como objetivo desmistificar e explicar o conceito de Discurso Universitário, ressaltando sua relevância tanto para a prática clínica quanto para o entendimento das estruturas de poder nas instituições de ensino e formação psicanalítica.
Entender o Discurso Universitário é importante não apenas para psicanalistas e estudantes de psicanálise, mas também para qualquer pessoa interessada em compreender como o saber é construído, transmitido e mantido dentro de uma relação de poder. Ao investigar a estrutura e a função do Discurso Universitário, podemos analisar como as instituições, sejam elas acadêmicas ou clínicas, operam na formação dos sujeitos e na imposição de uma certa lógica de saber que pode alienar o sujeito de sua própria verdade.
Os Quatro Discursos de Lacan
Antes de mergulharmos profundamente no Discurso Universitário, é necessário entender brevemente os quatro discursos formulados por Lacan, que surgem como uma tentativa de mapear as formas como as relações sociais e o saber se estruturam:
1. O Discurso do Mestre: Esse discurso reflete a ordem social baseada na autoridade e na dominação. O mestre, nesse discurso, ocupa a posição de agente, com o saber como um produto, algo a ser mantido sob controle e proteção.
2. O Discurso Universitário: Aqui o saber é colocado em uma posição de poder, sendo o foco deste texto, e sua estrutura e impacto serão explorados em detalhe mais adiante.
3. O Discurso do Histérico: Neste discurso, o sujeito se coloca em uma posição de questionamento constante do saber. O histérico questiona o mestre e o saber, desestabilizando sua autoridade.
4. O Discurso do Analista: O discurso central da psicanálise, no qual o analista abdica da posição de saber para que o sujeito possa encontrar sua própria verdade através do processo analítico.
Cada um desses discursos expressa uma forma de interação social, e o Discurso Universitário, com sua ênfase na manutenção e transmissão do saber, revela-se especialmente relevante para aqueles que atuam nas áreas do conhecimento e formação, como a psicanálise.
O que é o Discurso Universitário?
O Discurso Universitário é uma estrutura discursiva que, como todo discurso em Lacan, articula-se através de quatro elementos: o sujeito ($), o saber (S2), o agente (S1) e o objeto a. Esses quatro elementos se organizam de maneira específica no Discurso Universitário, revelando como o saber é usado como um instrumento de poder, tanto na educação quanto nas práticas institucionais e clínicas.
Estrutura do Discurso Universitário
A estrutura do Discurso Universitário pode ser visualizada da seguinte maneira:
S2 → a
——
S1 → $
Essa fórmula representa uma dinâmica em que o saber (S2) está no topo, ocupando o lugar de poder, enquanto o sujeito ($) é posicionado no lugar de consequência, como produto desse saber. Vamos destrinchar cada um desses elementos e sua posição no discurso:
– O saber (S2): No Discurso Universitário, o saber ocupa o lugar da dominação. O conhecimento é o elemento central que define as relações sociais. As instituições, particularmente as acadêmicas, operam sobre a base de uma autoridade do saber. Esse saber, contudo, não é qualquer saber; ele é sistematizado, codificado e transmitido como um produto institucionalizado, o que Lacan vê como um fator de alienação do sujeito.
– O sujeito ($): O sujeito é sempre dividido em Lacan, e no Discurso Universitário ele aparece como produto do saber, ou seja, um sujeito que é constituído por esse saber instituído, muitas vezes alienado de sua verdade subjetiva. O saber, em sua função de poder, modela o sujeito, impondo uma identidade a ele que nem sempre condiz com sua subjetividade mais profunda.
– O objeto a: No lugar da verdade, encontramos o objeto a, o objeto de desejo. No Discurso Universitário, esse objeto é muitas vezes obscurecido pelo saber, sendo algo que escapa à sistematização acadêmica e à formalização do conhecimento. O saber, aqui, tenta dar conta de tudo, mas há sempre um resto, algo que não pode ser plenamente sabido ou apreendido.
– O agente (S1): O agente, no Discurso Universitário, é o suporte do saber. No contexto acadêmico, o professor, por exemplo, atua como o porta-voz desse saber, não como o mestre que impõe sua vontade, mas como alguém que opera em nome da transmissão desse saber.
O Saber como Poder
O saber, nessa estrutura, adquire uma função de poder, pois ele é o elemento que organiza e determina as relações. As instituições, sejam elas acadêmicas ou clínicas, mantêm o saber em uma posição de autoridade, muitas vezes criando uma distância entre o sujeito e seu próprio processo de subjetivação. A prática clínica também não escapa dessa dinâmica, uma vez que o saber psicanalítico, transmitido em contextos institucionais, pode ser facilmente instrumentalizado como forma de controle e normatização, afastando o sujeito de sua própria verdade.
Relação entre o Discurso Universitário e a Educação
O Discurso Universitário encontra seu lugar privilegiado nas instituições de ensino, onde o saber é produzido, transmitido e legitimado. A educação, nesse sentido, se torna um campo fértil para a manifestação desse discurso, pois é através dela que o saber institucionalizado se consolida e perpetua.
Produção de Conhecimento e Formação de Psicanalistas
Nas instituições de ensino, como universidades e centros de formação psicanalítica, o Discurso Universitário se revela no modo como o saber é apresentado como algo fixo e indiscutível. Lacan alerta para o perigo da alienação que pode ocorrer quando o saber se torna um fim em si mesmo, em vez de ser um meio para a transformação do sujeito.
A formação de psicanalistas, por exemplo, muitas vezes enfrenta o desafio de evitar essa alienação. O saber psicanalítico, em sua formalização, corre o risco de ser reduzido a uma série de conceitos e técnicas que, se desvinculados de uma análise crítica, podem desviar o sujeito de sua própria singularidade. O desafio, portanto, é encontrar um equilíbrio entre o uso do saber e a abertura para o “não-saber”, que é central na prática analítica.
Comparação com o Discurso do Mestre
Ao comparar o Discurso Universitário com o Discurso do Mestre, podemos perceber que, enquanto o mestre se apoia na autoridade de um saber que controla, o Discurso Universitário busca uma legitimação desse saber através da formalização e sistematização. No entanto, ambos os discursos compartilham uma característica: a tentativa de manter o saber como algo inquestionável. Na educação, isso pode ser observado na forma como as instituições muitas vezes resistem a questionamentos que desestabilizam o saber estabelecido.
O Discurso Universitário na Prática Clínica
A prática clínica psicanalítica é, em muitos aspectos, um campo de confronto com o Discurso Universitário. Embora a psicanálise, em sua essência, vise desmantelar as formações rígidas do saber e abrir espaço para o desejo do sujeito, ela também opera dentro de um campo institucional onde o saber é valorizado e normatizado.
Relações Transferenciais e Autoridade do Saber
Na clínica, as relações transferenciais são um lugar onde o Discurso Universitário pode se manifestar de maneira sutil. O analista, muitas vezes visto como figura de autoridade, pode ser colocado em uma posição de saber pelo analisando, reproduzindo a lógica do Discurso Universitário. Cabe ao analista, nesse contexto, estar atento a essa dinâmica e resistir à tentação de ocupar essa posição de saber, abrindo espaço para que o sujeito possa confrontar sua própria falta de saber.
O vínculo com a autoridade do saber também se reflete nas relações entre o estudante de psicanálise e seus professores. Muitas vezes, o estudante pode projetar no professor uma figura de mestre do saber, reforçando uma relação de alienação que dificulta o surgimento de uma subjetividade mais autônoma.
Crítica ao Saber e à Normatização
Um dos grandes perigos da prática clínica que opera sob o Discurso Universitário é a normatização do sujeito. Quando o saber se torna uma ferramenta de controle, a clínica pode se transformar em um espaço de conformidade, onde o objetivo é ajustar o sujeito a um ideal normativo, em vez de ajudá-lo a explorar sua singularidade e o que lhe escapa do saber institucionalizado.
Críticas e Reflexões Lacanianas sobre o Saber
Lacan foi um crítico feroz do saber institucionalizado e de sua função de poder. Para ele, o saber, quando colocado em uma posição de dominação, pode alienar o sujeito e afastá-lo de sua verdade subjetiva. Isso é particularmente evidente no contexto das instituições acadêmicas e clínicas, onde o saber tende a ser sistematizado e transmitido de maneira a obscurecer o que há de singular em cada sujeito.
O Papel do “Não-Saber” na Análise
Na prática analítica, Lacan enfatiza a importância do “não-saber”. O analista não deve ocupar o lugar de um mestre do saber, mas sim o lugar de alguém que facilita o encontro do sujeito com sua própria falta de saber. Isso significa que a análise deve ser um espaço onde o sujeito pode confrontar o que lhe escapa do saber institucionalizado, abrindo espaço para o desejo e para o surgimento de novas formas de subjetividade.
O Discurso Universitário, ao manter o saber em uma posição de poder, pode sufocar essa dimensão do “não-saber”. Por isso, é fundamental que o psicanalista mantenha uma postura crítica em relação ao saber, reconhecendo suas limitações e abrindo espaço para o surgimento do que Lacan chamava de “verdade subjetiva”.
Considerações Finais
O Discurso Universitário, com sua ênfase no saber como instrumento de poder, oferece uma lente crítica para analisar as relações sociais e as dinâmicas institucionais, tanto na educação quanto na clínica psicanalítica. Para os psicanalistas e estudantes de psicanálise, é essencial reconhecer como esse discurso opera e como ele pode alienar o sujeito, distanciando-o de sua própria verdade subjetiva. Ao adotar uma postura crítica em relação ao saber, os psicanalistas podem criar um espaço onde o sujeito pode explorar o que lhe escapa do saber, permitindo o surgimento de novas formas de subjetividade e desejo.
Seminários de Jacques Lacan que abordam o conceito do Discurso Universitário:
1. Seminário 17 – “O avesso da psicanálise” (1969-1970)
Este é o seminário central onde Lacan formula os quatro discursos, incluindo o Discurso Universitário. Ele apresenta a estrutura e função do saber nesse discurso, destacando suas implicações no campo das instituições acadêmicas e no poder que o saber exerce sobre o sujeito.
2. Seminário 18 – “De um discurso que não fosse semblante” (1970-1971)
Nesse seminário, Lacan continua sua reflexão sobre os discursos, especialmente sobre o Discurso Universitário e a maneira como ele opera no contexto da educação e das instituições de saber.
3. Seminário 20 – “Mais, ainda” (1972-1973)
Aqui, embora o foco esteja mais na questão do gozo e na relação entre o desejo e o saber, Lacan faz referência ao Discurso Universitário no que diz respeito à transmissão de conhecimento e à alienação do sujeito no campo do saber.
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