Tag: O papel do inconsciente na teoria de Je segundo Lacan

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Je e Moi Segundo Lacan

Je e Moi Segundo Lacan

1. Introdução ao Conceito de “Je” e “Moi”

No cerne da obra de Jacques Lacan, encontramos a distinção fundamental entre “Je” e “Moi”, conceitos que, à primeira vista, podem parecer sinônimos, mas que ocupam posições teóricas radicalmente distintas dentro da psicanálise lacaniana. Enquanto o “Moi” está diretamente relacionado à noção do ego, da imagem que o sujeito tem de si mesmo, o “Je” refere-se ao sujeito em sua dimensão mais profunda e enigmática, o sujeito do inconsciente. Essa divisão, que emerge da relação entre o imaginário, o simbólico e o real, é central para a compreensão da constituição do sujeito na teoria lacaniana e revela a complexidade da subjetividade humana.

A distinção entre esses dois termos surge da tentativa de Lacan de subverter a noção tradicional de um sujeito consciente, autônomo e coeso. Enquanto o “Je” aponta para a fragmentação e a alienação inerentes à estrutura do sujeito, o “Moi” se refere à ilusão de unidade e coerência criada no registro do imaginário. Lacan, ao longo de sua obra, irá explorar como essas duas dimensões do sujeito estão em constante tensão, e como essa tensão é central para a formação do desejo, para a estruturação do inconsciente e para os impasses encontrados no processo analítico.

2. O “Je” na Teoria Lacaniana

O Sujeito da Enunciação

O conceito de “Je” em Lacan refere-se ao sujeito da enunciação, aquele que fala a partir de uma posição descentrada e não-consciente. Diferente do sujeito da enunciado (o “Moi”), que é o sujeito explícito e consciente que aparece no discurso, o “Je” está sempre em uma posição eclipsada, revelando-se apenas nas falhas e nos lapsos da fala. É o sujeito que emerge no intervalo entre o que é dito e o que é ouvido, nos equívocos, nas hesitações, nas repetições e nas formações do inconsciente.

Lacan afirma que o “Je” é o sujeito do inconsciente, pois ele nunca coincide completamente com o sujeito consciente que o “Moi” pretende ser. Na enunciação, o “Je” revela a divisão do sujeito, sua alienação na linguagem e sua subordinação ao desejo do Outro. Esse “Je” é marcado por uma falta estrutural, uma vez que o sujeito, ao adentrar o campo da linguagem, perde algo de sua essência, ficando sempre em busca de um preenchimento que nunca se realiza completamente.

Descentramento do Sujeito

Para Lacan, o “Je” não é um sujeito autônomo e consciente, mas sim um sujeito descentrado, fragmentado e dependente do Outro. Diferente das abordagens clássicas que concebiam o sujeito como um centro de controle e de racionalidade, Lacan propõe que o sujeito é constituído pela linguagem e, portanto, está sempre alienado em relação a si mesmo. Esse descentramento é evidenciado na relação do sujeito com o desejo: o sujeito lacaniano é um sujeito desejante, cujo desejo é sempre o desejo do Outro, nunca plenamente consciente ou acessível.

O “Je”, enquanto sujeito do inconsciente, não controla suas ações nem seus pensamentos. Ele é o que resta do sujeito quando este se desvia do discurso consciente, quando fala sem saber o que está dizendo, quando seus atos falham em representar suas intenções. O “Je” é, portanto, o sujeito dividido, que se revela nas contradições e nas falhas da experiência consciente, e que está sempre fora de seu próprio alcance.

Relação com o Inconsciente

O “Je” é profundamente conectado ao inconsciente, operando no campo do desejo e da falta. Lacan propõe que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, e o “Je” é o sujeito dessa linguagem. Isso significa que o inconsciente não é um reservatório de instintos primordiais, mas sim um sistema de significantes que determina a posição do sujeito no mundo. O “Je”, nesse sentido, é sempre uma posição de falta, pois o sujeito é constituído pela ausência, pelo desejo de algo que falta e que nunca pode ser plenamente articulado.

O desejo, em Lacan, está intrinsecamente ligado à estrutura da linguagem e à divisão do sujeito. O “Je” é o sujeito desejante, mas seu desejo é sempre mediado pelo Outro e pelos significantes que estruturam o inconsciente. Essa estrutura de falta e desejo coloca o “Je” em uma posição de constante busca por algo que o complete, uma busca que nunca encontra uma resolução definitiva.

3. O “Moi” na Teoria Lacaniana

O Eu Imaginário

O “Moi” é a construção do ego, o eu imaginário que o sujeito tem de si mesmo. Diferente do “Je”, que opera no campo do simbólico e está relacionado ao inconsciente, o “Moi” pertence ao registro do imaginário, à esfera da imagem e da identificação. É o ego que o sujeito desenvolve ao longo de sua vida, especialmente a partir do Estádio do Espelho, onde a criança, ao se reconhecer em uma imagem refletida, começa a formar uma noção de si mesma como um ser coeso e autônomo.

Essa imagem do “Moi” é, no entanto, uma ilusão. Embora o sujeito acredite ser um ser completo e autocontrolado, essa imagem é sempre uma construção fictícia, uma tentativa de lidar com a fragmentação interna e com a divisão estrutural que caracteriza o sujeito. O “Moi” é o resultado de uma série de identificações imaginárias que buscam criar uma sensação de continuidade e coerência, mas que, no fundo, mascaram a desordem e a falta que habitam o sujeito.

Formação no Estádio do Espelho

O Estádio do Espelho é um dos conceitos-chave para compreender a formação do “Moi” na teoria lacaniana. Durante esse estágio, que ocorre por volta dos seis a dezoito meses de idade, a criança, ao se reconhecer no espelho, forma pela primeira vez uma imagem de si mesma como um todo. Essa experiência é fundamental para o desenvolvimento do ego, pois permite que a criança comece a se identificar como um sujeito separado e distinto dos outros.

No entanto, essa imagem no espelho é uma construção imaginária, uma ficção que oculta a verdadeira fragmentação do sujeito. O “Moi” que emerge dessa experiência é uma tentativa de preencher o vazio e a falta que constituem o sujeito. Lacan sugere que o sujeito, ao longo de sua vida, continuará a buscar identificações que reforcem essa imagem ilusória de unidade e controle, mas que, no fundo, estará sempre alienado em relação a si mesmo.

Identidade e Ilusão de Coerência

O “Moi” oferece ao sujeito a ilusão de uma identidade estável e coerente. No entanto, essa identidade é construída sobre uma base frágil, já que o sujeito, no registro do simbólico, é sempre dividido e descentrado. O “Moi” se esforça para manter a aparência de continuidade e autocontrole, mas essa imagem é constantemente desafiada pelas contradições do desejo e pelas manifestações do inconsciente.

A identidade do “Moi” é, portanto, uma forma de defesa contra a angústia da fragmentação. O sujeito, ao identificar-se com imagens e com o discurso do Outro, tenta apagar os sinais de sua divisão interna. No entanto, como Lacan mostra, essa unidade é sempre ilusória, e o sujeito é forçado a confrontar a divisão entre o “Je” e o “Moi” em diversas ocasiões, especialmente no contexto da análise psicanalítica.

4. Relação entre “Je” e “Moi”

Tensão entre o Eu Simbólico e o Eu Imaginário

A coexistência de “Je” e “Moi” no sujeito é marcada por uma tensão constante. O “Je”, enquanto sujeito simbólico e do inconsciente, opera em um nível que escapa à percepção consciente, enquanto o “Moi”, como ego imaginário, tenta impor uma sensação de controle e coesão. Essa tensão entre o “Je” e o “Moi” reflete a divisão estrutural do sujeito em Lacan, uma divisão que se manifesta na relação entre o desejo e a identificação, entre o inconsciente e a consciência.

O “Moi” tenta constantemente controlar e reprimir o “Je”, pois o ego é ameaçado pela desordem e pela fragmentação que o “Je” revela.

O Papel da Linguagem

A linguagem desempenha um papel central na diferenciação entre “Je” e “Moi”. Para Lacan, o sujeito é constituído pela linguagem, o que significa que a entrada no simbólico (o campo da linguagem e dos significantes) é o momento em que o sujeito emerge, mas também se fragmenta. O “Je” é o sujeito da enunciação, aquele que fala a partir de uma posição descentrada, enquanto o “Moi” é o sujeito do enunciado, a figura consciente e coerente que se apresenta no discurso.

O “Je” é marcado pela falta e pelo desejo, pois ao falar, o sujeito revela algo do inconsciente, algo que não pode ser totalmente controlado pelo “Moi”. A linguagem, portanto, opera como o mediador entre o sujeito e o Outro, mas também é o que marca a divisão do sujeito. Quando o “Je” emerge, ele escapa à intenção do “Moi”, aparecendo nas lacunas, nos lapsos e nas contradições do discurso.

A relação entre o “Je” e o “Moi” é, assim, profundamente estruturada pela linguagem, que ao mesmo tempo une e separa o sujeito de si mesmo. O “Moi” tenta se apropriar do discurso e dar-lhe uma forma coesa e compreensível, enquanto o “Je” aponta para as falhas dessa tentativa, mostrando que o sujeito é sempre dividido e alienado na linguagem.

Divisão do Sujeito

A divisão entre o “Je” e o “Moi” em Lacan reflete uma das ideias mais centrais da sua teoria: o sujeito é fundamentalmente dividido. Essa divisão não é apenas entre o consciente e o inconsciente, mas também entre o sujeito da linguagem (o “Je”) e o sujeito da identificação imaginária (o “Moi”). O “Je” revela a falta que constitui o sujeito, enquanto o “Moi” tenta ocultar essa falta por meio da ilusão de uma identidade coesa.

Essa cisão interna é o que define o sujeito psicanalítico: ele está sempre em conflito entre o desejo inconsciente e as identificações conscientes. O “Je” é o lugar onde o desejo irrompe, enquanto o “Moi” tenta reprimir e controlar esse desejo para manter a ilusão de um ego unificado. O sujeito, assim, é sempre dividido entre essas duas instâncias, o que cria tensões tanto no nível psicológico quanto no nível clínico.

5. Implicações Clínicas

Impasse no Processo Analítico

No contexto da psicanálise, a identificação com o “Moi” pode criar impasses significativos no tratamento. Como o “Moi” é a instância que busca coerência e controle, ele frequentemente resiste a qualquer revelação que ameace a ilusão de unidade. Isso pode levar o analisando a se agarrar a identificações defensivas e a evitar o confronto com seu desejo inconsciente, dificultando o progresso na análise.

A resistência do “Moi” é especialmente evidente na transferência, onde o analisando tende a projetar no analista suas próprias identificações imaginárias, reforçando a ilusão de que o sujeito é capaz de controlar e compreender plenamente seus próprios processos psíquicos. O analista, ao perceber esses impasses, deve trabalhar para desestabilizar essas defesas, permitindo que o “Je” surja no discurso e, com isso, possibilitar que o desejo inconsciente se manifeste.

Descentramento do Ego na Análise

Um dos objetivos centrais da psicanálise lacaniana é descentrar o ego, ou seja, desestabilizar o “Moi” para que o “Je”, o sujeito do inconsciente, possa emergir. Esse descentramento ocorre à medida que o analisando começa a perceber que o ego, com todas as suas identificações e defesas, não é a verdadeira fonte de suas ações e pensamentos. O trabalho analítico visa, portanto, enfraquecer a rigidez das identificações do “Moi” e abrir espaço para o surgimento do desejo inconsciente, representado pelo “Je”.

Esse processo não é simples, pois o ego tende a resistir a qualquer descentramento, temendo a perda de controle e a sensação de desintegração. No entanto, é precisamente esse descentramento que permite ao sujeito acessar as formações do inconsciente e, consequentemente, avançar no processo de análise. A tarefa do analista é, assim, desestruturar o “Moi” para que o sujeito possa confrontar sua divisão e falta estrutural.

Transferência e a Relação com o “Je” e “Moi”

A dinâmica de transferência na psicanálise lacaniana está diretamente ligada à relação entre o “Je” e o “Moi”. Durante a análise, o analisando tende a transferir para o analista suas identificações imaginárias, associadas ao “Moi”, projetando no analista figuras significativas de sua vida. No entanto, é na transferência que também surgem manifestações do “Je”, uma vez que o inconsciente se revela através dos equívocos, lapsos e repetições no discurso do analisando.

O analista, ao interpretar esses momentos, trabalha para destacar a divisão entre o “Je” e o “Moi”, ajudando o sujeito a reconhecer a fragmentação que habita sua subjetividade. A transferência, portanto, não é apenas um fenômeno de repetição das identificações passadas, mas também um campo onde o “Je” pode se manifestar, permitindo ao sujeito se deparar com seu desejo inconsciente.

Conclusão

A distinção entre “Je” e “Moi” em Lacan é central para a compreensão da estrutura do sujeito psicanalítico. Enquanto o “Moi” é a instância imaginária que busca criar uma ilusão de unidade e controle, o “Je” é o sujeito do inconsciente, descentrado e marcado pela falta. A tensão entre essas duas instâncias define o conflito interno do sujeito, que é constantemente dividido entre o desejo e as identificações.

No contexto clínico, essa divisão tem implicações profundas, pois a identificação com o “Moi” pode criar barreiras no tratamento, enquanto o descentramento do ego possibilita o surgimento do “Je” e, com ele, a manifestação do desejo inconsciente. A análise lacaniana, assim, visa desestruturar as defesas do “Moi” e permitir que o sujeito se confronte com sua verdadeira condição: a de um sujeito dividido, alienado na linguagem e movido pelo desejo do Outro.

Para abordar a distinção entre “Je” e “Moi” na obra de Lacan, vários seminários podem ser citados, já que ele desenvolve esses conceitos ao longo de sua trajetória teórica. Abaixo estão alguns seminários que discutem esses temas:

1. Seminário 1 – “Os Escritos Técnicos de Freud” (1953-1954):

– Neste seminário, Lacan começa a explorar a questão do sujeito e a estruturação do inconsciente, introduzindo a ideia de um sujeito que está dividido, conceito fundamental para a diferenciação entre “Je” e “Moi”.

2. Seminário 2 – “O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise” (1954-1955):

– Aqui, Lacan examina a função do ego (“Moi”) e a sua relação com o inconsciente. Ele destaca a diferença entre o sujeito consciente (ego) e o sujeito do inconsciente, preparando o terreno para a distinção entre “Je” e “Moi”.

3. Seminário 3 – “As Psicoses” (1955-1956):

– Neste seminário, Lacan aborda o descentramento do sujeito, fundamental para entender o “Je”, e como a linguagem e o simbólico estruturam o sujeito, alienando-o de uma identidade fixa.

4. Seminário 6 – “O Desejo e Sua Interpretação” (1958-1959):

– Este seminário é crucial para entender o “Je” como sujeito do desejo e como o desejo é estruturado no inconsciente, em contraposição ao “Moi”, que busca uma falsa coesão e controle.

5. Seminário 10 – “A Angústia” (1962-1963):

– Lacan explora a angústia ligada à divisão do sujeito, detalhando o conflito entre o “Je” e o “Moi”, com foco na resistência que o “Moi” impõe contra a irrupção do desejo inconsciente.

6. Seminário 11 – “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise” (1964):

– Aqui, Lacan aprofunda a noção de sujeito do inconsciente (“Je”) e sua alienação na linguagem, contrastando isso com o ego imaginário (“Moi”). Este seminário é uma fonte essencial para a compreensão da estrutura do sujeito em sua teoria.

7. Seminário 14 – “A Lógica do Fantasma” (1966-1967):

– Lacan discute como o sujeito se posiciona no campo do desejo e do fantasma, explorando mais a fundo a relação entre “Je” e “Moi”.

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