1. Introdução ao Conceito de Repetição
O conceito de repetição na psicanálise é um dos pilares centrais para a compreensão do funcionamento psíquico humano. Diferente do senso comum, onde a repetição é vista apenas como a reiteração de ações ou comportamentos, na psicanálise ela possui uma profundidade singular, envolvendo processos inconscientes e mecanismos psíquicos complexos. Freud e Lacan, dois dos principais teóricos da psicanálise, dedicaram-se extensivamente à investigação desse fenômeno, destacando como a repetição revela elementos ocultos do inconsciente e como ela atua tanto no adoecimento quanto na cura.
No contexto psicanalítico, a repetição está profundamente ligada ao retorno do recalcado, à compulsão de reviver experiências traumáticas e ao padrão inconsciente que leva o sujeito a se confrontar repetidamente com situações dolorosas ou frustrantes. A importância da repetição se manifesta na prática clínica, onde o paciente muitas vezes traz à sessão padrões de comportamento e de pensamento que indicam uma resistência ou um desejo inconsciente de reviver experiências passadas.
Esse conceito é essencial para a teoria psicanalítica porque permite ao analista compreender como o sujeito lida com seus conflitos internos, e de que maneira esses conflitos são expressos, repetidamente, na vida cotidiana e no ambiente terapêutico.
2. Origem do Conceito: Freud e a Compulsão à Repetição
Sigmund Freud, em seu trabalho seminal “Além do Princípio do Prazer” (1920), introduziu a noção de compulsão à repetição, um conceito que abalaria os alicerces da teoria psicanalítica até então vigente. Até esse ponto, Freud acreditava que o princípio do prazer, ou seja, a busca constante pela redução da tensão e o aumento da satisfação, guiava o comportamento humano. Contudo, com a observação clínica de pacientes que repetiam comportamentos autodestrutivos ou experiências traumáticas, Freud começou a questionar se havia algo além do princípio do prazer em jogo.
A compulsão à repetição refere-se à tendência de o sujeito reviver, inconscientemente, experiências dolorosas ou traumáticas, mesmo quando estas não trazem nenhum prazer ou alívio imediato. Freud observou que, em muitos casos, o sofrimento repetido parecia escapar à lógica do princípio do prazer, apontando para a existência de uma força mais profunda no psiquismo – o que ele chamou de “pulsão de morte” (Todestrieb). Essa pulsão de morte seria a responsável pela tendência à autodestruição e pela repetição do traumático, funcionando em oposição ao princípio de vida, ou Eros, que busca o prazer e a conservação.
Além disso, a repetição também surge como uma expressão do retorno do recalcado. Freud percebeu que o que não pode ser lembrado conscientemente tende a se manifestar de forma repetitiva em ações, comportamentos e sintomas. A resistência que o paciente demonstra no processo analítico, muitas vezes expressa através da repetição, indica a dificuldade em lidar com conteúdos inconscientes reprimidos, que se recusam a vir à tona de maneira direta e são revividos de maneira distorcida.
3. Repetição e o Inconsciente
A repetição, como um dos mecanismos mais poderosos do inconsciente, revela aspectos que muitas vezes o sujeito não consegue acessar diretamente. O que é reprimido e não pode ser lembrado conscientemente retorna sob a forma de ações, fantasias, ou situações recorrentes. Nesse sentido, a repetição funciona como uma janela para o inconsciente, fornecendo ao analista e ao paciente uma oportunidade de trabalhar esses conteúdos ocultos.
Freud observa que traumas não processados tendem a se repetir de forma sintomática, como uma tentativa falha de elaboração. O trauma, sendo um evento que ultrapassa a capacidade psíquica do sujeito de lidar com ele no momento de sua ocorrência, é recalcado, mas continua a agir silenciosamente, manifestando-se em ações e padrões repetitivos. A elaboração do trauma na psicanálise, então, envolve o trabalho através dessas repetições, permitindo que o sujeito ganhe consciência sobre o que estava recalcado.
Na prática clínica, a repetição se apresenta de diversas formas. Por exemplo, um paciente pode continuamente se envolver em relacionamentos destrutivos, revivendo, sem saber, aspectos de experiências dolorosas de sua infância. Outras vezes, a repetição se manifesta nos próprios sintomas, como a repetição de um sonho ou de um comportamento obsessivo. Em todos esses casos, a repetição funciona como uma tentativa do inconsciente de trazer à luz aquilo que foi recalcado, mesmo que o sujeito conscientemente deseje o contrário.
4. Jacques Lacan e o Conceito de Repetição
Lacan, ao retomar o conceito de repetição, oferece uma leitura que enriquece a perspectiva freudiana, integrando suas próprias concepções sobre o Real, o Simbólico e o Imaginário. Para Lacan, a repetição está profundamente relacionada com o Real – aquele registro da experiência que escapa à simbolização e à representação.
Diferente do Simbólico, que é o reino da linguagem e da estrutura social, e do Imaginário, que lida com imagens e ilusões de completude, o Real é o que resta fora dessas tentativas de representação. A repetição, para Lacan, é a tentativa constante de lidar com esse Real que não pode ser totalmente apreendido ou simbolizado. Ela aponta para algo que foi perdido ou nunca plenamente alcançado, e que o sujeito busca reencontrar, ainda que infrutiferamente.
A famosa fórmula lacaniana de que “a repetição é do Real” indica que a repetição não é apenas uma tentativa de lembrar ou reviver o passado, mas sim uma tentativa de enfrentar aquilo que o sujeito não pode integrar em sua experiência consciente. Nesse sentido, a repetição carrega uma dimensão de impossibilidade – o que se repete é o fracasso em atingir uma resolução completa ou satisfatória.
Lacan também destaca que a repetição é inevitável, dado que o sujeito está inserido na linguagem (Simbólico) desde seu nascimento, e que por meio dessa linguagem que ele tenta se compreender e se situar no mundo. No entanto, o Real sempre retorna de forma insistente, escapando à simbolização, e isso é o que torna a repetição uma característica essencial da condição humana.
5. A Repetição na Prática Clínica
No contexto do setting analítico, a repetição é uma das principais formas pelas quais os conteúdos inconscientes emergem. O paciente, muitas vezes sem perceber, recria dinâmicas passadas, revivendo conflitos antigos nas suas interações com o analista. Essa repetição pode se manifestar como resistência, onde o paciente repete padrões de evitação ou defesa, dificultando o avanço da análise.
O papel do analista é ajudar o paciente a reconhecer esses padrões repetitivos e trabalhar através deles. Muitas vezes, é necessário romper o ciclo repetitivo para que o paciente possa avançar em direção à cura. Esse processo pode ser longo e desafiador, uma vez que o paciente muitas vezes resiste à mudança, justamente por estar preso em seus padrões de repetição.
A repetição também pode servir como uma forma de comunicação inconsciente, onde o paciente tenta expressar algo que ainda não consegue articular verbalmente. Nesse sentido, identificar e interpretar as repetições é uma parte crucial do trabalho analítico, ajudando o paciente a integrar aspectos de sua experiência que estavam fora de sua consciência.
6. Repetição e Transferência
A relação entre repetição e transferência é um dos aspectos mais fascinantes da psicanálise. Na transferência, o paciente transfere para o analista sentimentos, desejos e conflitos que originalmente pertenciam a figuras significativas de seu passado, como os pais.
Para discutir o conceito de repetição na psicanálise com base em Freud e Lacan, várias obras de ambos os autores são fundamentais. Aqui estão as principais fontes que tratam desse conceito:
Obras de Sigmund Freud sobre a Repetição:
1. “Além do Princípio do Prazer” (1920) – Freud introduz o conceito de compulsão à repetição e a noção da pulsão de morte, explorando como o sujeito tende a repetir experiências traumáticas.
2. “Recordar, Repetir e Elaborar” (1914) – Esse artigo foca na repetição como um fenômeno central da transferência na clínica psicanalítica. Freud mostra como os pacientes revivem seus conflitos e traumas no processo analítico.
3. “O Inconsciente” (1915) – Freud discute a natureza do inconsciente e a forma como o material recalcado retorna por meio da repetição, especialmente através de atos sintomáticos.
4. “Análise Terminável e Interminável” (1937) – Nesta obra tardia, Freud reflete sobre a dificuldade de lidar com a repetição no processo analítico, explorando os limites da análise e o papel da resistência.
Obras de Jacques Lacan sobre a Repetição:
1. “Seminário 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise” (1964) – Lacan dedica uma parte significativa do seminário ao conceito de repetição, conectando-o ao registro do Real e sua relação com o trauma e a pulsão de morte.
2. “Seminário 2: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise” (1954-1955) – Neste seminário, Lacan já começa a abordar a repetição como um conceito central, relacionado à resistência e à transferência na análise.
3. “Função e Campo da Fala e da Linguagem” (1953) – Aqui, Lacan discute como a repetição é um efeito do inconsciente estruturado como linguagem, abordando a importância da fala e da linguagem na psicanálise.
4. “Escritos” (1966) – Em vários textos dessa coletânea, Lacan revisita o conceito de repetição, aprofundando seu vínculo com o Simbólico e o Real, especialmente em textos como “A instância da letra no inconsciente”.
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