Falta-a-ser (manque-à-être) Segundo Lacan

Falta-a-ser (manque-à-être) Segundo Lacan

Introdução ao Conceito de Falta-a-ser

O que é a “falta-a-ser” (manque-à-être) na obra de Lacan?

A “falta-a-ser” (manque-à-être) é um conceito central na teoria de Jacques Lacan, sendo uma das chaves para a compreensão da constituição do sujeito na psicanálise. Diferente da noção freudiana de falta relacionada à castração ou à ausência de um objeto específico, o conceito lacaniano de “falta-a-ser” implica uma falta mais profunda, estrutural, que atravessa o ser do sujeito. A “falta-a-ser” não se refere a uma carência concreta ou tangível, mas a uma incompletude ontológica, uma ausência constitutiva que emerge na relação entre o sujeito e o campo simbólico.

Lacan desenvolve esse conceito ao longo de sua obra para explorar como o sujeito, ao se inscrever na linguagem e se submeter à ordem simbólica, torna-se marcado por essa falta. Em outras palavras, o sujeito nunca é pleno ou completo. A entrada na linguagem — e a consequente inscrição no simbólico — impõe uma divisão no ser, uma alienação fundamental. A “falta-a-ser” é, portanto, a experiência da falta de identidade plena, da impossibilidade de ser integralmente aquilo que se deseja.

Contextualização Histórica

O conceito de “falta-a-ser” é parte integrante do desenvolvimento da teoria estruturalista de Lacan, que emerge no contexto de sua releitura de Freud à luz da linguística estrutural e da antropologia de Lévi-Strauss. Diferentemente de Freud, que articulava a falta principalmente em termos de ausência do objeto desejado (como no complexo de Édipo), Lacan introduz a falta como algo estruturante para o sujeito desde sua entrada no mundo simbólico, através da linguagem e da castração simbólica.

Ao longo de seus seminários e escritos, Lacan explora o conceito de “falta” em diferentes níveis — falta do objeto (falta-a-ter) e falta de ser (falta-a-ser) — demonstrando que a subjetividade se organiza em torno dessa estrutura de falta. Enquanto Freud teorizava a subjetividade por meio da dinâmica entre o desejo e a repressão de impulsos inconscientes, Lacan desloca essa questão para o campo simbólico, onde a falta se torna uma característica estrutural da existência.

Objetivo do Artigo

Este artigo tem como objetivo explorar como o conceito de “falta-a-ser” se torna um elemento fundamental para a constituição do sujeito, articulando-se ao desejo, ao inconsciente e à linguagem. Para tanto, abordaremos a “falta-a-ser” em sua relação com o desejo e a constituição do sujeito no campo simbólico, diferenciaremos a “falta-a-ser” da “falta-a-ter” e analisaremos suas implicações clínicas, especialmente no manejo da transferência e no trabalho psicanalítico com o desejo e a fantasia.

Falta-a-ser e a Constituição do Sujeito

O Sujeito no Simbólico

Na teoria lacaniana, o sujeito é uma construção do simbólico, sendo alienado e fragmentado a partir do momento em que se inscreve na linguagem. Esse processo de alienação resulta em uma divisão interna, uma falta constitutiva — a “falta-a-ser”. O sujeito, ao ser nomeado e identificado através da linguagem, perde algo de sua unidade primordial e se encontra marcado por uma ausência essencial.

A entrada no simbólico ocorre a partir da castração simbólica, um conceito que, em Lacan, vai além da ausência fálica física ou simbólica para se referir à renúncia de uma completude imaginária. Quando o sujeito se inscreve no campo da linguagem, ele é forçado a abandonar qualquer possibilidade de ser pleno ou autossuficiente. A linguagem, por sua própria estrutura, é incompleta e não pode abarcar a totalidade do ser, e é justamente nesse hiato entre o ser e o simbólico que a “falta-a-ser” se instala.

Essa incompletude é, portanto, a condição fundamental do sujeito no campo lacaniano. O sujeito não é um ser autônomo, mas um ser faltante, sempre em busca de algo que o complete. Esse movimento de busca incessante define o desejo, que, em Lacan, se organiza em torno da “falta-a-ser”.

O Papel do Desejo

O desejo, na teoria de Lacan, está profundamente enraizado na “falta-a-ser”. Ao contrário do conceito freudiano de desejo, que está relacionado ao princípio do prazer e à satisfação de impulsos reprimidos, o desejo lacaniano é a própria busca pelo que falta ao ser. O sujeito nunca deseja um objeto em si, mas o que o objeto representa em termos de completude impossível.

Lacan articula essa dinâmica de desejo como algo que nunca pode ser completamente satisfeito. O sujeito, em sua falta constitutiva, está sempre à procura de algo que o complete, mas esse algo nunca é encontrado, pois o desejo é perpetuamente deslocado de um objeto para outro. É a falta que move o desejo e é a “falta-a-ser” que mantém o sujeito em movimento, sempre buscando no campo do Outro aquilo que o satisfará.

Nesse sentido, a “falta-a-ser” é a força motriz do desejo. A impossibilidade de ser completo — de ser uno consigo mesmo — gera o movimento incessante do desejo, que se orienta não para a satisfação plena, mas para a perpetuação dessa busca.

A Importância da Linguagem

A linguagem, para Lacan, é o mediador central entre o sujeito e o simbólico. Através da linguagem, o sujeito é inserido na cultura, nas leis e nas normas, mas também é através da linguagem que a falta se inscreve no sujeito. Lacan usa o termo “significante” para descrever como as palavras não capturam a totalidade do real, mas, ao contrário, marcam a ausência do que elas pretendem nomear. A linguagem nunca consegue dizer tudo, e é essa impossibilidade de dizer plenamente o ser que estabelece a “falta-a-ser”.

Ao entrar na linguagem, o sujeito se submete ao simbólico, que, por sua vez, cria uma divisão entre o que o sujeito é e o que ele pode ser através dos significantes que o nomeiam. Essa separação, essa cisão entre o ser e a linguagem, é a “falta-a-ser”. Lacan argumenta que o sujeito só pode se constituir como tal na medida em que se aliena no campo do Outro (o simbólico), e essa alienação é marcada pela falta essencial.

Falta-a-ser x Falta-a-ter

Diferença Entre “Falta-a-ser” e “Falta-a-ter”

Um ponto fundamental na teoria lacaniana é a distinção entre “falta-a-ser” (manque-à-être) e “falta-a-ter” (manque-à-avoir). A “falta-a-ter” refere-se à ausência de um objeto, seja ele simbólico, imaginário ou real. Essa ausência pode ser experienciada em relação a um objeto concreto, como a perda de algo ou alguém. No entanto, a “falta-a-ter” se situa em um nível mais superficial do que a “falta-a-ser”, uma vez que envolve a falta de algo que pode ser recuperado ou substituído por outro objeto.

Por outro lado, a “falta-a-ser” não pode ser suprida por qualquer objeto, pois trata-se de uma falta estrutural, ligada à própria constituição do sujeito. A “falta-a-ser” é a experiência da incompletude do ser, uma impossibilidade de atingir a plenitude ontológica. Enquanto a “falta-a-ter” pode ser temporária e substituível, a “falta-a-ser” é permanente e constitutiva.

Exemplificação Clínica

Na clínica psicanalítica, a diferenciação entre essas duas formas de falta é essencial para compreender a dinâmica do desejo e do sintoma no sujeito. Por exemplo, no caso de um sujeito que apresenta uma compulsão por acumular objetos, podemos interpretar esse comportamento como uma tentativa de preencher a “falta-a-ter”. O sujeito acumula, buscando sempre um novo objeto que possa substituir o que falta. No entanto, mesmo que essa falta seja temporariamente preenchida com a aquisição de um novo objeto, a satisfação é apenas momentânea.

Por outro lado, a “falta-a-ser” se manifesta em níveis mais profundos, muitas vezes na angústia existencial do sujeito. Um exemplo clássico é o sujeito que, mesmo tendo aparentemente tudo — sucesso, riqueza, reconhecimento — ainda sente uma sensação de vazio, uma ausência que não pode ser preenchida. Essa é a “falta-a-ser”, que não pode ser suprida por nenhum objeto externo.

Impacto no Desejo e na Fantasia

A “falta-a-ser” também desempenha um papel crucial na construção da fantasia. A fantasia, na teoria lacaniana, é a maneira como o sujeito tenta lidar com a falta, tentando dar sentido ou organizar sua experiência em torno do que falta. A fantasia é, portanto, uma resposta à “falta-a-ser”, uma tentativa de velar ou encobrir a ausência fundamental.

No entanto, a fantasia nunca consegue suprimir totalmente a “falta-a-ser”, e é por isso que o sujeito continua a desejar. O desejo se organiza em torno da falta, e a fantasia tenta oferecer uma ilusão de completude. No entanto, essa ilusão é sempre frágil, e o sujeito frequentemente se depara com o retorno da falta, que o empurra a reconstituir sua fantasia ou buscar novos objetos de desejo.

Falta-a-ser e o Outro

O Papel do Outro na Teoria Lacaniana

O Outro, em Lacan, é uma categoria fundamental para a constituição do sujeito. O Outro representa o campo do simbólico, o lugar onde as leis, a linguagem e as normas culturais estão inscritas. Ao se inscrever na linguagem, o sujeito se submete ao campo do Outro, sendo que é nesse campo que a “falta-a-ser” se estrutura.

O Outro é também o lugar onde o desejo se articula. O sujeito, ao se submeter ao Outro, torna-se dependente do desejo do Outro, ou seja, busca ser reconhecido e amado por ele. No entanto, como o Outro também é marcado pela falta, o sujeito nunca pode obter a completude ou o reconhecimento total. O desejo do sujeito, portanto, é sempre mediado pelo desejo do Outro.

A Relação do Sujeito com o Outro

Essa relação entre o sujeito e o Outro é marcada pela falta, tanto a falta no sujeito quanto a falta no Outro. O sujeito deseja o que o Outro deseja, mas o que o Outro deseja é, por sua vez, algo impossível de ser plenamente capturado. A “falta-a-ser” do sujeito é, portanto, inseparável da falta no Outro, criando uma dinâmica de desejo e alienação que é central na teoria lacaniana.

O sujeito busca ser para o Outro, mas essa busca é sempre frustrada, pois o Outro também é incompleto. Essa incompletude do Outro é o que permite a proliferação do desejo no sujeito. A relação entre o sujeito e o Outro nunca é de plenitude, mas de uma troca incessante de significantes que tentam, mas falham em preencher a falta.

Implicações Clínicas do Conceito de Falta-a-ser

Aplicação na Prática Clínica

O conceito de “falta-a-ser” é fundamental para o trabalho clínico do psicanalista, especialmente no manejo do desejo e da transferência. Na escuta psicanalítica, é crucial que o analista esteja atento à forma como a “falta-a-ser” se manifesta no discurso do sujeito. Muitas vezes, os sintomas e os comportamentos do paciente podem ser compreendidos como tentativas de lidar com essa falta constitutiva, seja por meio de compulsões, de repetições ou da fantasia.

O psicanalista, ao reconhecer a “falta-a-ser” do sujeito, pode ajudar a trazer à tona o que está em jogo no desejo do analisando. O trabalho psicanalítico não visa preencher essa falta, mas fazer com que o sujeito se aproprie dela, entendendo como a falta constitui seu desejo e como ele pode se posicionar em relação a isso.

O Lugar do Psicanalista

O psicanalista, nessa perspectiva, ocupa o lugar do Outro, mas um Outro que também é marcado pela falta. Lacan adverte contra o risco do analista se posicionar como alguém que pode suprir ou preencher a falta do sujeito. Ao contrário, o analista deve manter um lugar de não-saber, permitindo que a falta permaneça aberta e que o desejo do sujeito possa emergir.

Na transferência, o sujeito frequentemente projeta no analista o desejo de ser completado ou de encontrar respostas para sua falta. O analista, no entanto, não deve se posicionar como um sujeito suposto saber, mas como alguém que permite que o desejo e a falta continuem a operar, sem oferecer respostas fechadas ou soluções completas.

Casos Clínicos Ilustrativos

Um exemplo clínico que ilustra a “falta-a-ser” pode ser o caso de um paciente que, apesar de alcançar todos os seus objetivos profissionais e pessoais, sente-se vazio e insatisfeito. Ele busca incessantemente novos desafios, novos objetos, mas nunca se sente realizado. Nesse caso, o analista pode ajudar o paciente a perceber que o que está em jogo não é a falta de algo concreto, mas a “falta-a-ser”, uma falta estrutural que não pode ser preenchida por objetos externos.

Outro exemplo pode ser um paciente que repete comportamentos autodestrutivos, como uma forma de lidar com sua falta. O analista pode, nesse caso, trabalhar para que o paciente reconheça que esses comportamentos são tentativas de escapar da “falta-a-ser”, mas que não oferecem uma verdadeira solução.

Conclusão

O conceito de “falta-a-ser” é um dos pilares da teoria lacaniana e oferece uma lente poderosa para compreender a constituição do sujeito, o desejo e o trabalho clínico na psicanálise. A “falta-a-ser” revela que o sujeito nunca pode ser plenamente completo, e é essa falta que move o desejo e a busca incessante por algo que o satisfaça. No campo clínico, o psicanalista pode usar esse conceito para orientar sua escuta e ajudar o sujeito a se apropriar de sua falta, abrindo novas possibilidades para o trabalho do desejo e da fantasia.

Essa falta constitutiva, que está no cerne da subjetividade, é tanto uma fonte de sofrimento quanto de movimento criativo. Reconhecer a “falta-a-ser” é, em última instância, reconhecer a impossibilidade de ser completo e, a partir daí, encontrar novas formas de lidar com o desejo e a falta que nos constituem como sujeitos.

O conceito de “falta-a-ser” (manque-à-être) é amplamente explorado por Lacan em diversos seminários, principalmente nos seguintes:

1. Seminário 4: “A Relação de Objeto” (1956-1957)

Neste seminário, Lacan começa a desenvolver a relação entre o sujeito e o objeto, destacando a importância da falta, introduzindo uma distinção entre a falta do objeto e a falta no ser.

2. Seminário 6: “O Desejo e sua Interpretação” (1958-1959)

Aqui, Lacan explora o desejo como aquilo que surge em função da falta-a-ser, refletindo sobre como o desejo é sustentado pela estrutura da falta no sujeito.

3. Seminário 8: “A Transferência” (1960-1961)

A transferência é discutida em relação à falta-a-ser, onde o desejo do sujeito e a falta constitutiva do ser são fundamentais para entender o processo da transferência no cenário clínico.

4. Seminário 10: “A Angústia” (1962-1963)

Neste seminário, Lacan relaciona a angústia com a falta-a-ser, apontando que a angústia não está relacionada à falta de um objeto específico (falta-a-ter), mas à falta estrutural no ser.

5. Seminário 11: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise” (1964)

A falta-a-ser é trabalhada como um conceito central para a constituição do sujeito, principalmente no contexto da alienação e da divisão do sujeito no campo simbólico.

6. Seminário 14: “A Lógica da Fantasia” (1966-1967)

Lacan relaciona a fantasia à falta-a-ser, mostrando como a fantasia opera para encobrir essa falta estrutural no sujeito.

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