A transferência é um dos conceitos centrais na psicanálise, essencial para o processo analítico, tanto na teoria freudiana quanto nas reformulações de Jacques Lacan. É na transferência que o campo inconsciente ganha visibilidade, projetando-se na relação entre analisando e analista. Neste texto, vamos explorar em profundidade o conceito de transferência segundo Lacan, com ênfase na projeção de sentimentos do analisando no analista, desde suas origens em Freud até as implicações no manejo clínico lacaniano.
1. Introdução à Transferência
Definição de Transferência: O Conceito Psicanalítico e Suas Raízes em Freud
O termo “transferência” (Übertragung, em alemão) foi cunhado por Freud para descrever um fenômeno observado nos tratamentos psicanalíticos: a tendência do paciente de deslocar, ou transferir, sentimentos, desejos e fantasias inconscientes originalmente direcionados a figuras significativas do passado (geralmente os pais) para o analista. Freud notou que essas emoções, frequentemente ligadas ao desejo ou à agressão, emergiam na relação terapêutica, parecendo ser reencenadas no presente com o analista.
Para Freud, a transferência é uma manifestação de uma repetição inconsciente, onde o paciente revive, no espaço da análise, experiências emocionais e afetivas primárias. Esse fenômeno permite ao analista acessar o inconsciente do paciente e trabalhar esses conteúdos de forma controlada, possibilitando a análise da repetição e, eventualmente, a dissolução de padrões neuróticos.
A Evolução da Ideia de Transferência no Campo da Psicanálise
Freud inicialmente considerava a transferência um obstáculo ao tratamento, uma resistência que interferia na neutralidade do processo analítico. Contudo, ele posteriormente reconheceu a importância da transferência como parte integrante da análise. A transferência passou a ser vista como o meio pelo qual o inconsciente do paciente se manifesta na relação com o analista, permitindo que as fantasias, medos e desejos reprimidos fossem trabalhados em um ambiente seguro.
No entanto, a complexidade da transferência exige um manejo delicado, pois é uma armadilha em que o analista pode facilmente cair, confundindo os sentimentos projetados pelo paciente com uma relação objetiva. Lacan, décadas depois, reformula essa noção ao sublinhar a dimensão simbólica da transferência, deslocando o foco da repetição emocional para o campo do desejo e da linguagem.
A Importância da Transferência no Processo Analítico
A transferência, longe de ser apenas um fenômeno técnico, é o eixo que articula a própria estrutura do tratamento analítico. É por meio dela que se constitui o vínculo analítico e, simultaneamente, o espaço em que o inconsciente pode operar e revelar suas estruturas. A relação entre o analisando e o analista, marcada pela transferência, permite ao primeiro reviver suas relações fundamentais, mas, principalmente, trabalhar seus desejos e resistências dentro do processo de análise. É neste espaço que se criam as condições para uma transformação subjetiva.
2. A Transferência Segundo Lacan
Lacan e Sua Reformulação da Transferência
Jacques Lacan traz uma contribuição crucial ao repensar a transferência como um fenômeno estrutural, inerente ao próprio campo da linguagem e da intersubjetividade. Para Lacan, a transferência não é apenas um fenômeno que ocorre entre duas pessoas (analisando e analista), mas um processo que se inscreve na dinâmica do desejo e da falta.
Lacan reinterpreta a transferência através de sua teoria dos três registros: o simbólico, o imaginário e o real. No registro simbólico, a transferência está vinculada à linguagem e ao “sujeito suposto saber” (como veremos adiante), enquanto no imaginário, a transferência é associada à identificação e à projeção de imagens parentais no analista. No registro do real, a transferência toca em elementos de gozo e naquilo que é irrepresentável, o que torna o manejo clínico ainda mais complexo.
O Lugar do Analista como “Sujeito Suposto Saber”
Um dos aspectos mais originais da teoria lacaniana da transferência é a noção de “sujeito suposto saber”. Quando o analisando se coloca em análise, ele atribui ao analista um saber sobre seus desejos inconscientes, um saber que o próprio sujeito não possui. O analista, então, ocupa o lugar de “sujeito suposto saber”, um posicionamento simbólico que sustenta o trabalho analítico.
A transferência, portanto, envolve uma suposição de saber, que é estruturada pela falta no sujeito. Para Lacan, o analista não tem, de fato, esse saber — ele apenas ocupa a posição de quem supostamente o possui. A função do analista é operar a partir desse lugar de falta, permitindo ao analisando confrontar sua própria busca por sentido e verdade.
Diferença entre a Abordagem Freudiana e Lacaniana da Transferência
Enquanto Freud concebe a transferência como uma reencenação de afetos passados na relação com o analista, Lacan introduz uma leitura mais complexa, ao localizar a transferência no campo do desejo e da linguagem. Lacan não reduz a transferência à repetição de experiências infantis; para ele, a transferência é uma manifestação do desejo inconsciente, articulada simbolicamente na relação com o Outro. Assim, o analista se torna o lugar onde o desejo do sujeito pode ser elaborado e, eventualmente, transformado.
3. Projeção de Sentimentos no Analista
O que Lacan Entende por “Projeção” no Contexto da Transferência
O conceito de “projeção”, utilizado na psicanálise desde Freud, refere-se ao mecanismo pelo qual o sujeito desloca para outra pessoa sentimentos ou impulsos inconscientes que não consegue reconhecer como próprios. Na transferência, segundo Lacan, essa projeção é mediada pela linguagem e pelo desejo inconsciente, permitindo que o analisando projete no analista seus afetos, suas angústias e, principalmente, suas fantasias de saber.
Para Lacan, a projeção não é simplesmente a externalização de um conteúdo psíquico, mas a expressão de um campo simbólico que organiza o desejo do sujeito. A transferência, então, não é apenas a repetição de afetos, mas o desvelamento da estrutura do desejo através da relação com o Outro.
Como o Analisando Transfere Sentimentos Inconscientes para o Analista
No contexto da transferência, o analisando desloca para o analista seus sentimentos inconscientes, que podem incluir amor, ódio, desejo ou medo. Esses sentimentos são frequentemente derivados de relações primárias, como as com os pais, e são revividos na relação analítica. No entanto, Lacan enfatiza que esses afetos estão ligados ao desejo inconsciente do analisando e, mais importante, à suposição de que o analista detém a chave para decifrar esse desejo.
O analista, ao se manter em uma posição de neutralidade, permite que o analisando projete seus afetos e fantasias, sem interferir diretamente. É precisamente essa neutralidade que sustenta o trabalho transferencial, criando um espaço onde o desejo pode ser explorado e interpretado.
O Papel da Transferência no Desvelamento dos Desejos Inconscientes do Sujeito
A transferência, para Lacan, é o palco onde o desejo inconsciente do sujeito pode ser desvelado. Ao projetar seus afetos no analista, o analisando não apenas revive suas fantasias passadas, mas também expressa, de maneira indireta, seu desejo. Esse desejo, no entanto, não é facilmente acessível, pois está sempre mediado pela linguagem e pelas defesas inconscientes do sujeito.
O trabalho analítico consiste em desvelar o desejo inconsciente por meio da análise da transferência. Ao interpretar as projeções do analisando e confrontá-lo com a falta e o desejo, o analista possibilita a elaboração de novos sentidos e, eventualmente, uma transformação subjetiva.
4. O Analista como Espelho e Sujeito Suposto Saber
A Função do Analista na Transferência: Neutralidade e o “Vazio” de Significados
Lacan insiste que o analista deve manter uma postura de neutralidade durante a análise. Isso não significa uma ausência de afeto ou empatia, mas uma posição onde o analista não responde diretamente às projeções do analisando. Ele deve funcionar como um “espelho vazio”, refletindo o desejo do analisando sem preencher as lacunas simbólicas que se apresentam na transferência.
Essa neutralidade permite que o analisando projete livremente seus afetos e fantasias, enquanto o analista, a partir dessa posição “vazia”, escuta os significantes que surgem na fala do sujeito. O analista deve, assim, resistir à tentação de ocupar um lugar de poder ou de dar respostas definitivas, mantendo-se como um lugar de falta e, portanto, como o “sujeito suposto saber”.
A Ideia do “Sujeito Suposto Saber” e Sua Centralidade no Processo Transferencial
A noção de “sujeito suposto saber” é central no pensamento lacaniano sobre a transferência. Quando o analisando entra em análise, ele inevitavelmente atribui ao analista um saber sobre seu inconsciente — um saber que ele próprio desconhece. O analista, ao ocupar essa posição simbólica, permite que o analisando articule seu desejo e suas fantasias a partir dessa suposição.
No entanto, Lacan sublinha que o saber atribuído ao analista é uma ficção, pois o analista não detém, de fato, esse conhecimento. O trabalho analítico consiste em desconstituir essa suposição, confrontando o analisando com a falta de saber do Outro e, consequentemente, com a própria falta que estrutura seu desejo.
O Manejo da Transferência pelo Analista e Seus Efeitos no Percurso Terapêutico
O manejo da transferência, para Lacan, exige que o analista se mantenha fiel à sua função simbólica de “sujeito suposto saber”, sem cair na armadilha de se identificar com essa posição. O analista deve sustentar a transferência, permitindo que o desejo inconsciente do analisando se manifeste, mas sem intervir diretamente.
O objetivo não é interpretar os conteúdos transferenciais de maneira imediata, mas permitir que o analisando, por meio da fala e da associação livre, revele as estruturas inconscientes que sustentam suas projeções. O manejo adequado da transferência pode levar a uma mudança significativa na posição subjetiva do analisando, à medida que ele é confrontado com sua própria falta e desejo.
5. Transferência e Desejo
A Relação entre Transferência e o Desejo do Analisando
A transferência, segundo Lacan, é indissociável do desejo. O que o analisando projeta no analista são, em última análise, expressões de seu desejo inconsciente. Esse desejo, no entanto, está sempre mediado pela linguagem e pela estrutura simbólica, o que torna sua interpretação complexa.
O desejo do analisando é estruturado em torno de uma falta primordial, que ele tenta preencher por meio da transferência. Ao projetar no analista a suposição de saber, o analisando está, na verdade, buscando uma resposta para essa falta, um sentido para seu desejo. O analista, ao sustentar a transferência, permite que o analisando confronte essa busca e, eventualmente, desloque sua relação com o desejo.
A Transferência como Meio de Acesso ao Desejo Inconsciente do Sujeito
A transferência é, para Lacan, o caminho privilegiado para acessar o desejo inconsciente do sujeito. Ao trabalhar com as projeções e fantasias do analisando, o analista pode desvelar as estruturas simbólicas que organizam seu desejo. No entanto, esse trabalho não se dá de forma direta; o desejo inconsciente é sempre elusivo, resistindo à captura total pelo simbólico.
O manejo da transferência, portanto, exige que o analista se mantenha atento às sutilezas da fala do analisando, escutando os significantes que emergem na relação transferencial. O desejo, para Lacan, não é algo que pode ser plenamente conhecido ou interpretado, mas algo que deve ser trabalhado dentro do campo simbólico, permitindo ao sujeito confrontar sua própria falta.
O Desejo do Analista e o Impacto na Estruturação da Transferência
Lacan também enfatiza que o desejo do analista desempenha um papel crucial na estruturação da transferência. O analista deve estar ciente de seus próprios desejos e resistências, para que esses não interfiram no processo analítico. O desejo do analista deve ser orientado para a escuta do desejo do analisando, sem que ele se identifique com o saber ou o poder.
O desejo do analista, então, é um desejo de saber, mas não no sentido de possuir o conhecimento, e sim de permitir que o analisando articule seu próprio desejo. Esse manejo cuidadoso do desejo do analista é fundamental para que a transferência possa ser um espaço de elaboração simbólica, e não de repetição de fantasias imaginárias.
6. A Importância da Transferência
Resistências e Obstáculos na Relação Transferencial
A transferência é um campo de intensos afetos, e nem sempre ela se manifesta de maneira positiva. Resistências podem surgir quando o analisando sente-se ameaçado pela revelação de seu desejo inconsciente. Essas resistências podem se manifestar na forma de transferência negativa, onde o analisando projeta no analista sentimentos de hostilidade, raiva ou frustração.
O analista deve estar preparado para lidar com essas resistências, sem retaliar ou se envolver emocionalmente. A resistência é parte integrante do processo analítico, e seu manejo é crucial para a evolução do tratamento. Lacan enfatiza que o analista deve escutar essas resistências como expressões do desejo inconsciente, e não como obstáculos externos ao processo.
Transferência Negativa: Quando o Analisando Projeta Sentimentos Hostis ou Agressivos no Analista
A transferência negativa, onde o analisando projeta no analista sentimentos hostis ou agressivos, é um fenômeno comum na análise. Esses afetos são frequentemente derivados de experiências passadas com figuras parentais, e sua reencenação na relação transferencial pode ser uma oportunidade valiosa para o trabalho analítico.
O analista, ao sustentar a transferência negativa, permite que o analisando confronte essas emoções e trabalhe suas defesas inconscientes. No entanto, o manejo da transferência negativa exige uma postura firme do analista, que deve resistir à tentação de responder diretamente às provocações do analisando, mantendo sua posição de “sujeito suposto saber”.
A Importância da Transferência na Análise para o Processo de Análise
A transferência é a espinha dorsal da análise. Sem ela, não há como o processo analítico avançar. É por meio da transferência que o desejo inconsciente do analisando se manifesta, e é no trabalho com a transferência que o analista pode ajudar o analisando a transformar sua relação com o desejo e a falta.
Lacan sublinha que o manejo da transferência não se trata de simplesmente interpretar os conteúdos transferenciais, mas de sustentar o campo simbólico em que o desejo do analisando pode ser articulado. A transferência, portanto, é tanto uma ferramenta técnica quanto um espaço de criação e transformação subjetiva.
A Dissolução da Transferência: Final da Análise ou Repetição do Processo?
O fim da análise é, para Lacan, um momento crucial, marcado pela dissolução da transferência. Isso não significa o fim dos sentimentos do analisando em relação ao analista, mas a superação da suposição de que o analista detém o saber sobre seu desejo. Quando o analisando é capaz de reconhecer a falta no Outro e assumir sua própria falta, a transferência se dissolve e o processo analítico pode ser encerrado.
No entanto, Lacan adverte que a dissolução da transferência não é um fim absoluto. O sujeito sempre estará confrontado com sua falta, e o desejo continuará a operar. O fim da análise, portanto, não é uma resolução final, mas uma abertura para novas formas de lidar com o desejo e a falta.
Conclusão
A transferência, segundo Lacan, é um espaço privilegiado de trabalho analítico, onde o desejo inconsciente do sujeito pode ser articulado e transformado. Ao projetar seus afetos no analista, o analisando revela suas fantasias e estruturas simbólicas, permitindo ao analista trabalhar com essas projeções de forma clínica. O manejo adequado da transferência, especialmente no que diz respeito ao “sujeito suposto saber” e ao desejo, é fundamental para a evolução do tratamento e para a transformação subjetiva do analisando. A dissolução da transferência, ao final da análise, marca um momento de importante mudança na relação do sujeito com seu desejo, apontando para a autonomia e para a assunção da própria falta.
Seminários de Jacques Lacan que abordam o conceito de transferência, a partir dos quais você pode explorar mais profundamente a projeção de sentimentos do analisando no analista:
1. Seminário VIII – A Transferência (1960-1961)
Este seminário é dedicado integralmente ao tema da transferência, e Lacan discute a dinâmica transferencial em detalhes, incluindo o conceito do “sujeito suposto saber”. Este seminário é fundamental para entender sua reformulação do conceito, diferenciando-se de Freud.
2. Seminário XI – Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964)
Embora focado em diferentes conceitos, Lacan retoma a questão da transferência, especialmente no que se refere ao “sujeito suposto saber” e à função do analista no processo transferencial.
3. Seminário XX – Mais, Ainda (1972-1973)
Nesse seminário, Lacan explora a questão do desejo, incluindo a relação entre o desejo do analisando e o lugar do analista na transferência, expandindo a reflexão sobre a estrutura do desejo e sua articulação no campo simbólico.
4. Seminário XVII – O Avesso da Psicanálise (1969-1970)
Embora o foco deste seminário seja o discurso e a estrutura social, Lacan aborda a transferência no contexto do discurso do analista, oferecendo insights sobre como a transferência opera no campo do desejo.
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